O feio e o bonito... Realmente uma ilus?o perigosa. Mas, há uma forma certa de ver a alma de uma consciência.
Lázarus seguiu as indica??es que vira na mente do dahrar que atacara a ele, Ariel e Safiel. Era a imagem e a sensa??o peculiar de um vale profundo, onde o sol batia apenas em algumas poucas horas do dia. As árvores, quase todas, eram recobertas de musgos e barbas-de-velho. A umidade era muito alta ali.
Havia um rio pequeno que marulhava tímido e manso dentro dele, em sua maior parte recoberto pela mata.
Lázarus desceu e tornou seu corpo um pouco menos denso, para poder andar ali com mais facilidade. Seu corpo estava quase transparente, e as folhas e galhos quase n?o eram perturbados quando se movia no meio deles.
Era até mesmo um lugar lindo e gentil aquele, Lázarus sentia, enquanto o examinava. Apesar das sombras, era um lugar que tinha uma aura boa.
Por isso estranhou quando viu a figura sentada numa minúscula clareira ao lado do rio. Sem sombra de dúvidas era um outro dahrar.
Foi muito súbito. Assim que ele percebeu o dahrar, o mesmo voltou os olhos enormes e negros para ele, e sua postura se alterou. Havia medo e revolta ali.
Depressa ele se levantou e se embrenhou na floresta, seguindo para cima no vale.
Aquele era um dahrar da altura de um humano, e o corpo parecia muito flácido. Era calvo e os bra?os desproporcionalmente mais longos. E, para completar, havia aquela protuberancia em suas costas, uma protuberancia que parecia viva.
Lázarus se aproximou do lugar onde a criatura estivera. Mantendo-se atento à toda sua volta se agachou e apoiou a m?o direita no solo.
Quando se levantou já sabia, a grosso modo, porque o dahrar que atacaram há poucos dias o tinha na memória. Esse dahrar ali quase o matara, e o futuro que ele prenunciara para aquele outro dahrar n?o era dos melhores. Esse, que agora estava ali, vira e contara sua morte.
Lázarus ent?o se elevou acima da floresta e encontrou a criatura mais para cima do vale, novamente em silêncio na beira do rio.
Totalmente atento manteve-se ainda um pouco sutil e desceu sobre a lamina de água do rio, os olhos fixos na criatura, no mesmo instante em que ele tomou consciência do anjo.
Novamente ele se levantou, mas desta vez n?o fugiu.
O dahrar se fixou em Lázarus, e Lázarus n?o pode deixar de sorrir.
Sons esvoa?avam pelo rio como convites para algo insondável, até que ele aceitasse. Lázarus abanou a cabe?a levemente, ignorando a oferta.
- Ora, ent?o você é um mentalizador. Esse seu truque n?o vai funcionar comigo – sorriu.
O ar convidativo e fresco, que parecia cheio de promessas agradáveis, se tornou ainda mais intenso.
Lázarus se deixou flutuar nele, experimentando-o.
> Ent?o é por isso que esse vale é t?o... convidativo. Ele é sua armadilha, é isso? Esses que traz às costas foram os que acreditaram em você?
- Você sabe por que n?o ficou tentado – ouviu da criatura.
Lázarus estranhou aquela voz. Era agradável demais, gentil demais. Tinha o sabor de uma manh? de sol e sons de chuvas na serra, e os cheiros das flores e da terra molhada.
Sua confus?o só aumentou.
Intensificou sua esfera de prote??o, seu merkabah se tornando bem mais forte e de prontid?o.
Flutuou devagar na dire??o da criatura, e ficou satisfeito quando ela recuou, apenas o suficiente para que mantivessem poucos metros de distancia, ele encostado no mato e Lázarus junto à margem, ainda no rio.
- Um dahrar morreu esses dias...
- Um que você matou – retificou o ser.
- Sim, um que eu matei. Nele vi esse vale, e tive a sensa??o de você. Por que ele teve medo de você? Ele n?o tinha medo da morte, que você lhe disse como seria. Do que ele teve medo?
- Ah, entendo... Você fala do ser demente, filho de um dem?nio muito ruim que estuprou e deixou a esposa e o filho, filho esse que devorou sua m?e enquanto ela ainda vivia. é desse que fala?
- Desse mesmo. Por que o medo dele? O que leva às costas, que parece guardar com tanto zelo?
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- O medo dele é porque ele era mau, e eu n?o gosto do mal ao meu lado.
Lázarus o observou com mais cuidado, em seus ouvidos o alerta de Shen: “mal pode parecer, mal n?o sendo”.
Suspirou fundo, se tranquilizando.
- O que leva às costas? – insistiu, vendo que o dahrar ficara quieto, possivelmente esperando que ele fizesse novamente a pergunta.
- Os maus que rondavam esse lugar...
- Só eles? – perguntou, a voz um pouco mais fria.
- E os que se afinam com o meu chamado. Os que desejam descanso, os que est?o cansados demais e querem um tempo.
- Ent?o você os mata, aprisiona suas centelhas e passa a se alimentar delas, é isso? é isso que s?o essas coisas nas suas costas? Centelhas aprisionadas?
Lázarus estranhou quando a criatura pareceu ficar abatida e triste, os pensamentos parecendo se perder muito longe. O viu voltar os olhos para o alto, para um buraquinho na floresta sobre o rio, e respirar fundo.
Ficou observando-o, enquanto ele guardava silêncio.
> Sabe, você me confunde – disse por fim.
- Tentando me julgar?
- Entender...
- E por que eu deveria aceitar ser entendido por você?
- S?o tempos difíceis e estranhos esses.
- Porém, o que pensam ou esperam de mim n?o me enfraquece – falou, a voz como o rio que corria.
- Quem s?o, ou foram os seus pais?
- Meu pai era um caído, minha m?e é uma tutu-marambá. Ela vive mais para o norte, e já faz muito tempo que n?o a vejo – falou, a voz com uma pontinha de saudade.
- Os tutus normalmente gostam de insuflar o medo.
- é o que contam, mas n?o é bem a verdade. Minha m?e é considerada uma xam?. Ela é uma curandeira.
- Essa forma que usa n?o é sua forma. Se parece assim para assustar os outros?
- Gosto de ficar sozinho. As consciências têm medo do que é feio – sorriu esgar?ado.
Sem que fosse preciso pedir para mostrar sua verdadeira forma, ele se alterou. Ele era grande, os bra?os ainda desproporcionalmente longos e os olhos continuavam vermelhos e rasgados, grandes. Todo seu corpo era coberto por uma longa e suave pelagem azulada manchada de poucas listras laranjas.
Mas a protuberancia ainda continuava nas costas.
- O que acontece quando encontra alguém mau?
- Eles aceitam o convite. No princípio n?o querem, mas acabam cedendo.
- E se n?o aceitarem?
- Sempre aceitam. Sou como a luz de uma fogueira para as bruxas da noite.
- E ent?o você se alimenta deles...
Lázarus o viu suspirar, pensativo.
Ent?o o viu fechar os olhos, e de suas costas se elevaram pequenas centelhas de luzes de variadas cores. Elas pulsavam suavemente, e o ar à volta se alterou, tornando-se um pouco mais opressivo e tormentoso.
O tutu sorria ainda quando as centelhas, velozmente, voltaram para suas costas.
- Elas se sentem bem agora. Elas n?o me causam mal, e se sentem bem. O medo é uma dor terrível, o sentimento de estar sozinho é uma dor terrível. Eles me sustentam com suas energias, e em mim encontram paz.
- E quando elas querem ir embora?
- Quando encontram a paz elas simplesmente v?o embora, porque aí n?o se sentem mais presas em mim. Abre espa?o para outras – sorriu.
- No vi corpos no vale...
- Quando as centelhas abandonam eles, eu os como – falou com simplicidade.
- Entendo... Mas, por que me contou tudo isto? Você tem se ocultado há muito tempo. Por que resolveu se revelar? Você sabia que o dahrar que deixou escapar ia te colocar à mostra – perguntou, sentando-se sobre uma rocha na margem.
- Eu chamei você – revelou com tranquilidade. - Ele foi meu arauto.
- Eu ouvi seu chamado. Por que me chamou? O que quer de mim?
- Eu queria ver um anjo. Eu gosto de anjos... – falou, a voz suave e pensativa. – Sabe, essas consciências que est?o comigo me mostraram muitas coisas, coisas muito bonitas de que eu já tinha me esquecido, e eu quero ver tudo isso de novo. Mas, ... por elas eu vi muita escurid?o também. O mundo só tem escurid?o... Eu n?o tenho como dar paz para todos – falou, o sofrimento surgindo forte em sua voz. – Eu queria encontrar um anjo para fazer uma pergunta.
- Que pergunta é? – quis saber, vendo os olhos se tomarem de esperan?as e receios se prenderem nos seus.
- Só tem escurid?o no mundo? Sinto uma enorme tristeza quando tento estender minha consciência. Os belos lugares se foram? Só sobrou este vale de que cuido?
Lázarus inspirou lenta e profundamente. Havia muito amor naquele ser, notou com carinho, entendendo, emocionado, o que ele realmente fazia.
- Elas só te mostraram isso porque é isso o que s?o. Quando só tem contato com escurid?o, é de escurid?o feito o seu mundo. Meu amigo, há uma dor maior, com a qual precisamos ter muito cuidado: n?o somos responsáveis pelos destinos escolhidos pelos outros. Você mesmo sabe disso, porque você n?o toma as centelhas que est?o com você, mas elas meio que, ao te ouvirem, se sentem seduzidas e te procuram. Fa?a o bem que faz, e isso será como sementes que o vento irá lan?ar pelos tempos. E, quando ao seu receio de que o mundo esteja em total escurid?o, fique tranquilo, porque isso n?o é verdade.
- é??? – ele perguntou, uma esperan?a iluminando a voz. Todo aquele ser se mostrou em expectativa, como se os músculos estivessem estirados, prontos para saltar da beira do precipício
- é sim. é lógico que há escurid?o no mundo, e lugares trevosos. Ah, meu amigo, mas há luz no mundo, há bondade nele, há honra...
O ser baixou a cabe?a e ficou em total silêncio, cismando, a mente perdida em possibilidades. E, quanto mais pensava, mais Lázarus via seu rosto se iluminar, bem lentamente. Ent?o, como se tivesse tomado uma decis?o, levantou os olhos para Lázarus.
A aura dele havia se tornado mais forte e viva, e o viu se alterar.
- Obrigado, anjo – suspirou, sua aura se tornando mais viva. Ent?o Lázarus viu a protuberancia onde ele protegia as m?nadas se tornar mais luminosa e assumir uma textura quase transparente, de onde várias centelhas, talvez agora mais confiantes e mais fortalecidas, se dispersavam.
- Ent?o, vale a pena – suspirou, terminando de se modificar definitivamente, sorrindo agradecido antes de sumir mata adentro.
Lázarus se elevou e se estendeu, vendo a criatura, como um arco-íris subindo lentamente o vale, deixando-o acima na cabeceira, ao lado de onde o rio mergulhava vale abaixo. Com a alma em silêncio e em paz flutuou muito vagarosamente, e se deixou ficar longo tempo sentado nas pedras da cachoeira, os pés mergulhados nas águas claras e geladas de um po?o raso, satisfeito.
Poucas vezes vira surgir uma nova espécie de pessoa, e agora vira uma assim. Era algo extremamente raro de se ver. O anjo criador, que todas as criaturas s?o, deve ter assomado por alguns segundos naquela criatura, que recuperou naquele breve instante o poder de criar.
Tinha certeza de que os bestiários, foi nome da nova criatura que ouvira ela se chamar enquanto saia do vale, ainda faria grandes coisas no mundo.