Lúcia sacou rapidamente sua espada curta, o som metálico da lamina vagou por todo o sal?o silencioso. Seus olhos estavam fixos em Ana, os músculos tensos, prontos para atacar.

  Ao seu lado, Arthur demorou um instante a reagir, suas m?os trêmulas antes de finalmente puxar seus dois sabres. O olhar dele estava vazio, um reflexo de puro choque e medo.

  — Vai pela direita! — gritou a garota, tentando manter o controle da situa??o. — N?o sei o que aconteceu aqui, mas precisamos aproveitar que ela está ferida!

  Arthur sequer respondeu. Estava em choque, o medo visível em cada linha de seu rosto. Mas, mesmo assim, obedeceu mecanicamente. Com passos hesitantes, come?ou a correr pela dire??o indicada.

  Lúcia apertou os dentes, segurando a espada com mais firmeza. Respirando fundo, ela come?ou a avan?ar pela esquerda, movendo-se com cuidado enquanto tentava se aproximar. Cada passo parecia mais longo que o normal, o ar ao redor denso de tens?o.

  Ana, sentada nos degraus do trono, olhava diretamente para ela. Seus olhos também estavam arregalados, n?o de medo, e sim de uma genuína surpresa.

  Mas antes que qualquer um deles pudesse efetivamente agir, o som de passos pesados soou dos corredores. Os olhos da rainha se desviaram abruptamente para a porta lateral, e os jovens instintivamente fizeram o mesmo.

  O ambiente parecia suspenso no tempo. Cada um dos presentes prendeu a respira??o, como se qualquer movimento pudesse trazer o desastre.

  "Quem é? Será um aliado ou outro inimigo? Se for alguém do lado dela, vai virar uma bagun?a...", pensou Lúcia, sua mente correndo t?o rápido quanto seus batimentos cardíacos.

  Os segundos se arrastaram como horas.

  Finalmente, a porta se abriu com um estrondo, batendo contra a parede com uma for?a suficiente para fazer profundas marcas na pedra.

  — Eles conseguiram passar pelos port?es, est?o vindo para o castelo! — rugiu a voz rouca e profunda, carregada de urgência.

  A figura que surgiu parecia deslocada naquele ambiente. Ela era enorme, e o sal?o, embora espa?oso, parecia apertado com sua presen?a. Sangue seco cobria cada fio do elegante pelo do grande lobo negro.

  Os olhos do animal brilhavam intensamente, cheios de inteligência feroz. Ele parecia exausto, mas pelo modo como se movia, era evidente que aquele sangue n?o era dele.

  Arthur recuou instintivamente, quase trope?ando enquanto encarava o imenso animal.

  Ana suspirou, como se a chegada da criatura fosse esperada. Seus ombros relaxaram, e, para a surpresa de todos, ela come?ou a rir.

  — Mas que interessante. Justo você... — disse ela, a voz rouca, mas foi interrompida.

  — Lúcia!

  O grito parecia um trov?o. Ele ergueu o focinho, farejando o ar, e seus olhos brilharam ainda mais intensamente ao se encontrarem com os da garota.

  Lúcia congelou, sua mente tentando processar o que estava acontecendo.

  "Ele... Ele sabe meu nome?"

  — Você... está diferente. — Garm avan?ou lentamente. — Mas n?o tem como eu esquecer da minha alcateia.

  A garota ficou ainda mais imóvel, uma estátua presa no momento. Sua m?o ainda apertava o ar onde antes estava a empunhadura de sua espada curta, agora caída no ch?o aos seus pés. Seus olhos estavam arregalados, e sem aviso, lágrimas come?aram a escorrer pelo rosto da jovem. Sua respira??o vacilou, e, antes que qualquer um pudesse reagir, ela correu em dire??o ao animal.

  — Lobo… Você tá t?o grande…

  Sua voz saiu trêmula, embargada pela emo??o. Ela abra?ou-o e enterrou o rosto no pelo sujo de Garm, ignorando o repugnante cheiro de morte. As lágrimas continuaram a cair, molhando o manto ensanguentado e enrijecido do lobo, enquanto seus bra?os o apertavam cada vez com mais for?a.

  Garm permaneceu parado, olhando para Lúcia como se n?o soubesse o que fazer. Seu corpo, t?o grande e imponente, parecia deslocado diante do gesto simples e cheio de emo??o. Ele inclinou ligeiramente a cabe?a, fechando os olhos por um instante carregado de uma tristeza contida.

  — Eu senti tanto a sua falta... — sussurrou Lúcia, a voz abafada pela pelugem espessa.

  Mais lágrimas vieram, até que, como se lembrasse onde estava, a garota enxugou os olhos com as mangas e deu um passo para trás, respirando fundo enquanto tentava recobrar a compostura.

  — Por que você está ajudando a rainha mascarada? — perguntou, o tom mais firme agora, mas ainda oscilando em sua confus?o. — Por que você n?o voltou para mim?

  Garm desviou o olhar, o focinho apontando para o ch?o. Sua respira??o estava pesada, e ele parecia hesitar, como se as palavras fossem difíceis de dizer.

  — Eu... In... Insídia... A... Ana... Você sabe... — gaguejou, visivelmente desconfortável.

  Sempre fora um peso n?o ter se reencontrado com Lúcia antes.

  Mais de um ano havia passado desde que encontrou Ana e entendeu a situa??o real das coisas. Ele sabia que o melhor era evitar voltar para a cidade humana, os riscos n?o valiam as possíveis perdas de ser feito prisioneiro, mas isso n?o tornava a escolha menos dolorosa.

  — Eu queria ter voltado... — murmurou, a voz grave cheia de arrependimento. — Juro que queria.

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  Lúcia apertou os punhos, seus olhos marejados mais uma vez. Ela queria gritar, acusá-lo, perguntar por que a tinha deixado sozinha. Mas ao invés disso, apenas avan?ou para abra?á-lo novamente.

  — Você devia estar lá... Eles... Eles te pegaram? Você foi capturado?

  Garm balan?ou a cabe?a, soltando um suspiro profundo.

  — N?o, Luci. Eu a encontrei.

  As palavras pareceram ecoar no ar por um instante, antes que a compreens?o a atingisse.

  "A encontrou…? Encontrou quem?"

  Ent?o, como se algo tivesse estalado dentro dela, Lúcia girou a cabe?a, seu olhar fixando-se na figura ferida e risonha caída nos degraus do trono.

  Ana estava ali, e com um gesto lento, ergueu a m?o em um aceno antes de remover lentamente a máscara.

  — E aí, Lucia... — murmurou, sua voz suave e sutilmente hesitante. A jovem diante dela n?o era mais a crian?a que conhecera no abismo, mas uma bela e feroz adolescente. — Fico feliz que está viva.

  Por um momento, Lúcia n?o acreditou no que via. A pessoa diante dela parecia t?o diferente, mas ao mesmo tempo inconfundível. N?o era mais a figura imponente e misteriosa que usava a máscara da rainha mascarada, mas Ana.

  Simplesmente a Ana.

  — Ana... — murmurou, como se dizendo o nome fosse eliminar o restante de suas dúvidas.

  Seus olhos se moveram rapidamente, reabsorvendo a cena. Ela viu as colunas destruídas, os escombros espalhados pelo ch?o, Jasmim semi-morta presa no ch?o pela lan?a negra, com seu rosto ensanguentado, ainda mantendo um olhar de deboche enquanto as assistia. E ent?o seus olhos voltaram para mercenária, ferida, exausta, mas ainda sorrindo.

  — Você... Você estava aqui o tempo todo e n?o me buscou? Você é muito malvada!

  Lúcia bateu o pé no ch?o, os bra?os cruzados em uma postura infantil que contrastava com o peso de toda a situa??o. Mas o sorriso em seus lábios a traía, mostrando o alívio que sentia, como se um enorme peso tivesse sido arrancado de seus ombros.

  Ana grunhiu, ajeitando-se um pouco nos degraus.

  — Deixa de frescura. Eu queria te buscar, mas esses seus amigos de Barueri n?o s?o muito legais com o meu povo.

  Lúcia franziu o cenho, apontando para Jasmim sem nem pensar.

  — Amigos? Você me mandou encontrar essa va... sua irm? e depois sumiu! Essa mulher fez da minha vida um inferno!

  Ana soltou uma risada baixa, fechando os olhos por um momento antes de responder.

  — N?o pode ter sido t?o ruim assim. Olha você aí, toda energética.

  — Isso é porque estou puta com você!

  Lúcia deu um passo à frente, hesitante. Por mais que estivesse irritada, algo na presen?a de Ana a fazia se sentir como se estivesse finalmente em casa.

  — Você me deve explica??es. Muitas explica??es.

  — Sim, sim. Mas podemos lidar com isso depois? — a mercenária caída a encarou com uma express?o de divers?o. — Estou sangrando em lugares que nem sabia que podiam sangrar.

  O comentário arrancou um riso hesitante de Lúcia, que enxugou as lágrimas restantes com as costas da m?o.

  Mesmo no caos, naquele instante, tudo parecia menos pesado.

  De canto de olho, a garota notou Arthur, que em algum momento de sua conversa, havia se aproximado de Jasmim.

  Seus olhos se estreitaram enquanto observava o garoto.

  "Ele está sorrindo daquele jeito de novo… Você n?o devia conhecer minha mestra assim, idiota."

  Ele estava em movimento, come?ando a correr.

  Apesar disso, Lúcia sorriu, como se quisesse ignorar o inc?modo.

  Todos estavam aqui.

  Garm. Ana. Arthur.

  Sua família, desajustada e caótica, estava reunida.

  "é um momento... feliz."

  Se permitiu sonhar com o futuro, até que viu a cabe?a de Arthur virar de forma anormal para a direita em um movimento impossível e perturbador.

  "O que...?"

  Ela congelou, incapaz de compreender como o pesco?o dele foi repentinamente quebrado.

  Foi ent?o que notou Ana.

  A rainha estava de pé, mesmo cambaleante. Uma de suas m?os segurava firmemente um dos sabres de Arthur, que estava perigosamente próximo à sua cabe?a.

  A outra m?o estava coberta de sangue, esmagando o pesco?o do garoto.

  O som seco do corpo de Arthur caindo ecoou pelo ambiente, seguido pelo silêncio.

  Ou melhor, quase silêncio, pois ao fundo um som quebrou a tens?o: Jasmim come?ou a rir.

  Era uma risada grotesca e molhada, cheia de um profundo escárnio e triunfo.

  Ela encarou Lúcia diretamente, os olhos brilhando com um misto de divers?o e crueldade.

  A express?o da garota come?ou a mudar.

  O sorriso que ainda pairava em seus lábios desapareceu.

  Felicidade deu lugar à raiva.

  Raiva virou confus?o.

  Confus?o se transformou em dor.

  E, por fim, tristeza.

  Seus passos, antes animados em dire??o a Ana, come?aram a se afastar cautelosamente. Suas m?os tremiam, sua respira??o ficou irregular e um aperto tomou conta de seu peito.

  — Talvez eu estivesse errada sobre esse tempo com eles ter feito bem pra você — a voz de Ana tinha uma pontada de decep??o. A rainha, sem for?as para se manter de pé, caiu novamente nos degraus da escada, notando a crise de panico da garota. — Espero que n?o se fa?a de cega. Ele queria me matar, eu reconhe?o um sorriso assassino quando vejo um. Culpe-o por sua tolice, n?o a mim.

  Lúcia balan?ou a cabe?a com for?a, apertando os olhos. As palavras n?o saíam.

  Os pensamentos em sua mente eram um turbilh?o, ent?o desistiu de pensar.

  Com um movimento brusco, ela pegou a espada caída e a prendeu na cintura.

  — Lobo... Me leva embora... Por favor…

  Sua voz era quase um sussurro, mas carregava um desespero que fez Garm choramingar.

  No entanto, antes de respondê-la, o grande lobo olhou para Ana.

  A rainha suspirou, deixando os ombros caírem em resigna??o. Havia tristeza em seu semblante, mas também aceita??o.

  Após um momento de reflex?o, acenou levemente com a cabe?a, como se desse sua bên??o silenciosa.

  — Se o castelo realmente foi invadido, é melhor que saiam logo— comentou. Antes que Garm se movesse, Ana apontou para Eva, ainda desmaiada. — N?o é seguro deixar ela aqui.

  Garm assentiu, entendendo. Assim, avan?ou, pegando Eva com uma mordida gentil, garantindo que n?o a machucasse. O grande lobo também pegou o arco da garota, prendendo-o cuidadosamente entre os dentes.

  Lúcia sequer olhava para a cena, apenas se afundava nas costas do animal, perdida em seus próprios pensamentos. O grande lobo virou-se, olhou para Ana uma última vez, e desapareceu pelos corredores em um salto, carregando as duas garotas para longe.

  — Realmente n?o foi meu reencontro dos sonhos... — murmurou a mulher, voltando a vestir a máscara com voz repleta de melancolia.

  Sem for?as, deixou o corpo ceder completamente, voltando a adormecer.

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