Ana franziu o cenho.

  — Parte da… história? O quê?

  O anjo apenas sorriu. N?o havia nenhuma alegria naquele sorriso, apenas mistério e uma pitada de algo sombrio.

  Ana sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

  Suando, apertou as têmporas de repente, uma dor aguda atravessando seu cranio como uma lamina quente.

  Memórias come?aram a inundar sua mente.

  Imagens fragmentadas. Momentos desconexos.

  Ali, Ana respirava profundamente, parada no topo de uma enorme montanha de escombros.

  Tudo ao redor parecia um mar congelado de destro?os. Uma infinidade de restos, impossível de distinguir — prédios que haviam caído, monumentos que haviam sido destruídos, pra?as, bares, museus, casas. Tudo agora formava um mosaico ruínas.

  Imóvel, encarava o horizonte.

  Ao longe, era possível ver o que um dia foi uma cidade. N?o sobrou nada em pé, nenhuma estrutura que pudesse contar sua história. A natureza, implacável em sua paciência, já havia tomado conta daquele lugar. Vinhas se enroscavam ao redor de blocos de concreto. árvores brotavam entre rachaduras no asfalto, seus troncos retorcidos apontando para o céu como se quisessem furar as nuvens. Flores silvestres pintavam o cenário de cores que contrastavam com tal melancolia.

  O vento sibilava por todo o local, carregando consigo o cheiro de terra úmida e folhas quebradas.

  De repente, Ana abriu os bra?os com um gesto grandioso, como se quisesse abra?ar todo aquele cenário morto.

  — EU SOU A DONA DO MUNDO!

  Sua voz cortou o silêncio, ecoando pelo vazio, amplificada pelo espa?o ao redor. O som ricocheteou nos restos de paredes e vigas, como se o próprio universo estivesse repetindo sua declara??o.

  A figura alada atrás dela, parcialmente envolta em sombras, balan?ou a cabe?a com um sorriso contido, sem jeito.

  E ent?o tudo desapareceu.

  Ana voltou ao caos.

  Seus olhos se abriram devagar, mas havia algo diferente neles. Um brilho feroz, como brasas que acabaram de ser acendidas.

  Ela sorriu. N?o um sorriso suave ou gentil, mas algo que transbordava autoconfian?a e desafio. Imponente, ela endireitou o corpo, ajustando a postura. Os ombros erguidos, o queixo levemente levantado, o peso de sua presen?a parecia dominar o espa?o ao seu redor.

  — é, Gabriel, parece que voltamos.

  — Eu gostava de você nessa época — comentou o anjo em tom casual, mas carregado de significado. — Era doida e falava sozinha, mas tinha garra.

  — Garra?

  Gabriel inclinou a cabe?a, como se ponderasse sobre a palavra, antes de gesticular com a m?o, indicando algo no ar.

  — Sim. Sabe, caminhava como se realmente fosse a dona do lugar.

  Ana o encarou por um instante. E ent?o, de repente, come?ou a rir.

  Sua gargalhada era alta, selvagem e poderosa.

  — N?o é “como se fosse” — disse, limpando uma lágrima que escorria devido ao riso. — Tudo ali era meu.

  A risada cessou, mas o sorriso feroz permaneceu em seus lábios enquanto ela dava um passo à frente, fixando Gabriel com um olhar desafiador.

  — Agora sai da porra do meu trono. Tenho que pegar a droga do meu mundo de volta.

  Gabriel continuou a observá-la, sua estranha anima??o se ampliando levemente. Ele parecia mais intrigado do que ofendido, como se estivesse estudando cada palavra e cada movimento dela.

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  Com uma elegancia quase teatral, se levantou.

  O movimento era deliberado, mas n?o lento. Ele ergueu as m?os de forma exagerada, como se estivesse em um palco, e fez uma reverência profunda.

  A rainha acenou em aprova??o e deu um passo à frente

  — Afinal... eu sou a dona do mundo. — sussurrou para si mesma, a frase escapando de seus lábios como uma verdade absoluta que precisava ser reafirmada.

  Ela estava pronta. Cada fibra de seu corpo parecia sintonizada para aquele momento. Caminhou em dire??o ao trono com passos decididos, o eco de suas botas no ch?o quebrando o silêncio.

  Mas, antes que pudesse se acomodar, algo inesperado aconteceu.

  Uma figura branca, inesperada e perturbadora, atravessou sua vis?o, movendo-se com uma gra?a que podia ser chamada de etérea.

  Ana parou abruptamente, seu corpo ficando tenso como um arco prestes a disparar. Seus olhos seguiram a figura, observando cada movimento.

  Era ela.

  Ou melhor, era aquilo que parecia ser ela.

  Com uma serenidade aterrorizante e ignorando a presen?a de todos, a figura branca caminhou até o trono e sentou-se nele como se fosse a única que merecia aquele lugar.

  Ana ficou imóvel, sem saber exatamente como proceder. Gabriel, por outro lado, deu alguns passos para trás apressadamente, com o desconforto estampado em seu rosto.

  — Mas que merda é essa?

  — Quem dera eu soubesse…

  Em meio ao sussurro, a rainha estendeu a m?o lentamente em dire??o à figura, movendo-se como se estivesse tentando tocar uma miragem.

  O estranho ser levantou sua própria m?o, replicando o gesto.

  As palmas das duas se encontraram.

  No instante do toque, Ana arregalou os olhos.

  Suas m?os estavam estranhamente… suaves.

  Demasiado suaves.

  N?o havia os calos que sempre marcaram sua vida, frutos de anos empunhando armas, escalando ruínas, sobrevivendo ao impossível.

  "é t?o estranho", pensou, pressionando ainda mais a m?o contra a da figura. "é como se tudo tivesse sido apagado."

  Ela franziu a testa, tentando entender.

  Foi ent?o que, ao pressionar ainda mais as palmas, uma dor aguda atravessou seu bra?o.

  Recuou instintivamente, puxando a m?o para trás com for?a.

  A dor desapareceu t?o rápido quanto veio, mas Ana permaneceu parada, ofegante. Quando sua vis?o finalmente repousou na palma da m?o algo havia surgido: uma grotesca cicatriz circular.

  Estava deformada, mas mesmo assim ainda se notavam detalhes t?o delicados que pareciam brilhar sob uma luz que n?o existia.

  — Lakkhana... — murmurou Ana, sem perceber que havia falado em voz alta.

  Sua mente foi inundada por um turbilh?o de pensamentos. Lentamente, abriu a boca, encostando em seus quarenta dentes, um por um.

  Eram sinais demais para ela ignorar.

  — Tudo tá fazendo cada vez menos sentido…

  Apertou a m?o, tentando apagar o símbolo, mas ele continuava lá, gravado em sua pele.

  — N?o vai tirar essa... 'coisa' daí?

  As palavras a tiraram do transe. Ao seu lado, Gabriel continuava observando tudo com cautela, mas sua express?o mostrava algo mais profundo: medo.

  — Nem fodendo. Que fique com esse trono imaginário, essa coisa me assusta — respondeu Ana, antes de dar de ombros, tentando esconder o desconforto crescente. — Vamos, atira em mim logo.

  O anjo piscou, confuso.

  — Atirar em você?

  — Sim. N?o é assim que fa?o para acordar?

  — Parece que nasci em um momento mais louco do que o esperado…

  No fim, n?o atirou, mas a obedeceu.

  Sem qualquer estranha cerim?nia, o mundo de Ana simplesmente escureceu.

  (N?o sou de dar avisos assim, tem detalhes que deixo para os leitores perceberem sozinhos, mas para os mais antigos, recomendo que leiam o come?o do capítulo 45 só para lembrarem das figura abaixo. Claro, só se quiserem.

  )

  O sal?o estava mergulhado em um silêncio inquietante, quebrado apenas pela respira??o irregular dos que ali permaneciam, desmaiados.

  De repente, um zumbido baixo e pulsante preencheu o ar.

  N?o só o som, mas o óculos preto caído ao lado do trono come?ou a emitir um brilho intermitente, uma luz suave e hipnotizante que piscava em um ritmo irregular.

  Jasmim, jogada logo ao seu lado, despertou com o ruído. Mal se movia, estava à beira morte, e sabia que o que restava era aguardar seu inevitável fim. Ainda assim, abriu os olhos devagar, o som chamando sua aten??o como um farol no meio de sua confus?o.

  O brilho aumentou gradualmente, preenchendo o espa?o com uma luz que parecia se fundir à escurid?o. A ca?adora n?o conseguia desviar o olhar.

  Ent?o, dois vultos surgiram.

  Eles apareceram do nada, sombras que se condensaram em formas humanoides. Suas bordas oscilavam, como se n?o fossem fixas, e seus tra?os estavam fora de sintonia com a realidade, mudando e flutuando em uma dan?a constante de luz e sombra.

  A ca?adora arregalou os olhos, seu corpo enfraquecido tremendo com o esfor?o de manter-se consciente. A vis?o à sua frente era t?o estranha que, por um instante, ela tentou se convencer de que era apenas uma alucina??o, fruto de um corpo à beira do colapso.

  Com dificuldade, olhou ao redor, usando toda a for?a que lhe restava. Procurava um sinal, qualquer coisa que confirmasse que aquilo n?o era real.

  Foi ent?o que encontrou Miguel, encostado na parede oposta.

  Era o único desperto, mas mantinha-se atento em algum ponto distante. Desesperada, a ca?adora percebeu que ele n?o parecia notar as figuras diante dela.

  — Perdemos a ferramenta — murmurou a primeira.

  — Sim. Está literalmente em peda?os — riu suavemente a segunda. — é uma pena, ela era ótima.

  Se moveram lentamente, como se examinassem o ambiente. Suas formas oscilavam e se distorciam conforme se aproximavam do trono, até que o primeiro pegou o óculos do ch?o com um movimento ágil.

  Foi ai que percebeu Jasmim, que voltou a encará-los. O segundo ser, com seus olhos brilhantes, inclinou a cabe?a levemente, como se estivesse examinando-a.

  — Humana. Quase morta.

  — Ela pode servir — comentou a primeira, também aproximando-se, como se estivesse avaliando um item em uma prateleira.

  — Devemos dar uma chance a ela?

  — A ferramenta foi perdida. Precisamos de uma substituta.

  Sem esperar mais, estendeu uma m?o em dire??o à mulher. O óculos ent?o se ergueu no ar suavemente, como se fosse puxado por fios invisíveis, e flutuou até Jasmim.

  Ela tentou se afastar, mas seu corpo n?o respondeu. Quando percebeu, o objeto já estava em seu rosto.

  No instante em que tocou sua pele, seus olhos se arregalaram ainda mais, e logo perderam o foco. Um brilho intenso emanou do óculos, e sua express?o mudou completamente.

  — E a inconsistente?

  A segunda figura suspirou.

  — Já conversamos sobre isso...

  — Mas ela está logo ao lado da cole??o. N?o podemos deixá-la aqui.

  A segunda figura estreitou os olhos, pareceu piscar levemente enquanto virava o rosto em dire??o a Ana. Por fim, apenas suspirou.

  — Isso seria passar dos limites. A Criadora deixou bem claro até onde a interferência pode ir.

  — Certo, certo…

  Eles ficaram em silêncio por um instante, suas formas oscilando, como se ponderando algo.

  — Bom, vamos logo, temos muito no que trabalhar.

  Acenando, o primeiro vulto ergueu Jasmim sem qualquer resistência. Os dois trocaram um último olhar, e, sem aviso, desaparecerem no ar.

  O silêncio voltou à sala do trono, como se nada tivesse acontecido.

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