Um toque despretensioso, suave, n?o esperado ou aguardado. Como eu podia saber de todo o poder que havia naquele ser e naquele momento?
Ariel inspirou o ar, demoradamente. Desde que acabara aceitando que teria que aprender a chamar aquele lugar de lar, já vasculhara tudo o que havia, todos os continentes, todos os lugares, examinando por alto toda a vida que havia ali.
é lógico que, como demiana já tinha algum conhecimento desse lugar, mas agora era diferente: n?o tinha como sair dele. Ent?o, o conhecimento teria que ser um pouco mais profundo.
E tinha que confessar: apesar de n?o ser algo que pudesse dizer “Uauuu”, ainda assim, encontrara algumas pessoas e seres incríveis, aos quais nunca prestara aten??o antes, que poderia dizer algo como “Nossa...”. Afinal, este e os outros universos possuíam seres bem mais incríveis que estes.
- Mas, estes até que têm algum potencial – sorriu.
De vez em quando, no entanto, gostava de parar e ficar quieta no alto de alguma montanha ou monte. Talvez ficar olhando as quedas, sentindo as emo??es dos que caiam, fosse alguma forma de puni??o. é bem provável que fosse assim. Mas, também, era uma forma de dizer aos que desciam: “Ei, você n?o está sozinho”. Por algumas vezes fora procurada por alguns bebes, como chamavam os recém caídos, t?o destruídos e t?o tristes que a única coisa que conseguira fazer fora abra?á-los e consolá-los, nenhuma palavra sendo dita. E, por mais incrível que pare?a, era o que mais dava resultado. Muitos sorriam, suspiravam e saiam, aceitando o desafio da nova vida.
E aquele era um dia como aquele, de ficar em silêncio, apenas observando o mais novo espetáculo do criador, a sua mais nova queda. Ainda era um espetáculo, apesar de que agora bastante diminuída de intensidade. Vendo tudo isso como se fosse de fora, era também uma forma de se dar um tempo para se tentar, mesmo, se acostumar com a nova vida, sabia. Via o desespero, via a mágoa dos que caiam, mas também via resigna??o e via aceita??es do que estava reservado. N?o era mais novidade, mas uma triste realidade. E em sua mente ficava rondando mais que uma pergunta: Quem causara isso? Ele, eles ou nós próprios?
De repente, tirando-a de seu alheamento, sentiu uma vibra??o diferente num monte suave n?o muito distante, um pouco à frente e à sua direita.
Virou-se para observar.
Talvez tivesse sido a forma silenciosa com que desceram, talvez o ser incrível que o acompanhava. O certo é que achou muito estranho os dois ali ao seu lado, principalmente o vigilante. Ele n?o era um bebe. Ele estava tranquilo demais, e parecia muito, muito experimentado em uma batalha. Era um guerreiro, sem dúvida.
Ele era muito alto e encorpado. Ele vestia uma armadura completa, de aspecto muito antigo, que nunca vira qualquer anjo ou demiana vergando. A armadura parecia muito amassada e rasgada, com grandes manchas de terra e sangue, e o vigilante que a vergava n?o parecia estar em melhor estado.
E havia aquele drag?o ao seu lado, em silêncio, pacientemente observando o céu.
Quando correra pela terra os encontrara espalhados em muitos lugares, das mais variadas espécies. Alguns eram malévolos e insidiosos, e alguns de uma nobreza e honra tocantes, enquanto outros eram sábios e outros, em muito menor número, pareciam ser de natureza enlouquecida. Alguns eram diurnos e outros noturnos. Mas, sem dúvida, todos eles eram impressionantes, e logo, de cara, ficara muito impressionada com eles.
é óbvio que tentou contato com eles, mas era recha?ada, muitas vezes tendo que sair rapidamente de perto deles, se n?o quisesse com eles se bater.
Mas, ali ao lado, estava um deles, e parecia totalmente em paz com o vigilante. Ele era um Azul de Corbélia, e devia ter em torno de uns oito metros de comprimento. Esse estava simplesmente magnífico, ali ao lado dele, o peito inchado, o rosto solene, voltado para o céu, sua aten??o ali perdida, passando a seguir de quando em quando uma queda mais dramática de algum caído.
Nenhum deles parecia ter notado sua presen?a, ou dado importancia a ela, o que era o mais provável, até mesmo ignorando o interesse que haviam lhe provocado.
Como que hipnotizada viu o anjo virar-se para o drag?o, levantar o bra?o direito e acariciar a asa com bastante carinho. N?o pode deixar de sorrir, ainda mais quando o meio do peito do drag?o pareceu se incendiar suavemente por um fogo interno.
Os dois pareciam conversar, notou, pois o anjo estava voltado para ele, e ele vez ou outra virava-se para o vigilante, como a lhe dar respeitosa aten??o.
De súbito o viu desfraldar as asas e saltar com suavidade para o ar, perturbando apenas poucas folhas de grama.
Sem poder tirar os olhos o viu subir, se esquivar de um lado onde as caídas pareciam mais intensas, e logo se perder dentro de grossas nuvens brancas na dire??o do leste.
- Pelo Trov?o, o que é você? – Ariel n?o conseguiu se controlar, curiosa com as vis?es que tivera. Ele ainda tinha os olhos voltados para o alto, seguindo a queda de alguns anjos de uma posi??o mais à frente.
Lázarus se virou, o olhar confuso na vigilante que o examinava divertida.
- T?o ruim assim? – perguntou voltando os olhos novamente para o alto.
- Você está um traste. Caído?
- Um AsaLonga – esclareceu, sem tirar os olhos do firmamento.
- Esperando alguém?
- N?o! Apenas curiosidade – falou, a voz mantendo a indiferen?a com sua presen?a.
- Gostei do seu amigo drag?o. Conversa animada a de vocês – sorriu, torcendo para ele dar trela à conversa e matar sua curiosidade.
E ele sabia a inten??o dela.
- é ela. é uma fêmea – revelou. – Curiosa quanto à conversa? – sorriu.
- N?o, de jeito algum – retrucou tentando disfar?ar seu interessa, voltando sua aten??o para o céu.
> Está bem, acho as conversas com drag?es muito inteligentes – capitulou, voltando-se novamente para o vigilante. – Mas, se n?o quiser me contar, tudo bem... Assunto só de vocês, eu entendo.
– Que bom – falou o vigilante, o que a deixou um pouco irritada, ainda mais ao ver um sorriso se insinuar nele.
Ela se virou secamente, com for?a se fixando no céu.
> Ele me disse que coisas est?o acontecendo no reino do leste – contou por fim. – Há rumores de ataques contra drag?es brancos – revelou.
- Entendo. Ele pediu ajuda?
- N?o. Mas, me deixei pronto a ajuda-los, se isso se mostrar.
- E o que ele respondeu? – perguntou, visto ele ter mantido o silêncio e os olhos pregados no alto.
- Ele agradeceu.
- E o que você acha? Acha que a situa??o lá está muito ruim? Quando estive por lá achei que eles n?o apreciam muito os drag?es.
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- Acho que sim. E você tem raz?o, porque os que moram lá, pessoas, homens e drag?es, parecem que n?o se d?o muito bem. Esperando alguém? – perguntou.
- Uma amiga já desceu e se foi – respondeu, após considerar a mudan?a de assunto que o vigilante fizera. Deu de ombros. - Mas, quem sabe alguma outra tenha cometido os mesmos erros que eu. Porém, por enquanto estou sozinha...
Lázarus baixou os olhos e se voltou para a vigilante, que tinha os seus abatidos no alto. A dor na voz dela fez seu cora??o se encolher um pouco.
- Sabe, você também n?o me parece que está muito bem, demiana...
- Ex-demiana. Novíssima vigilante – corrigiu ela. – Preciso aceitar quem me tornei.
- Pois ent?o, vigilante – reconheceu com um pouquinho de ênfase, - você n?o está em sua melhor forma, n?o é mesmo? Está com fome?
- Como? – estranhou ela se voltando para ele.
- Fome... Está se sentindo enfraquecida, um pouco zonza, com pouca energia?
Ela ficou um tempo se examinando, e teve que reconhecer que ele estava certo.
- Sim... Acho que é este mundo. Eu tentei me alimentar da luz mas...
- Mas, além de ser um processo extremamente demorado e desconfortável, produz pouca energia, n?o é o que descobriu?
- Você está certo! Há alguma forma de compensar a densidade desse mundo?
Preocupada, ela viu um sorriso condescendente surgir no rosto dele, o que a deixou um pouco irritada.
> Zombando de mim, AsaLonga?
- N?o, de forma alguma. Mas sua ignorancia sobre este mundo, sobre esta dimens?o, é tocante. Na verdade, pensando bem, a ignorancia sobre você mesma – completou.
- Por que diz isso? – perguntou intrigada, voltando-se completamente para ele.
- N?o é por causa desse mundo denso, n?o é por causa dessa dimens?o pesada que você n?o consegue se alimentar direito da luz. Quer dizer, n?o totalmente. é por sua causa, vigilante. Você já n?o é t?o etérea quanto era antes.
A vigilante se virou novamente para os espa?os vazios, os olhos outra vez cismando no céu, mascando as palavras e as explica??es do AsaLonga.
Lázarus percebeu que a dor e tristeza que ela mostrara antes pareciam agora um pouco mais intensos.
- Ent?o, terei que viver como um animal... – cismou em voz alta. – Eu vi, em muitos planetas, como os animais se alimentam. Ca?am-se uns aos outros, matam-se e devoram-se uns aos outros, se alimentam dos cadáveres abandonados nos campos. Ai,.. – gemeu sentida. - Terei que fazer o mesmo?
- Claro que pode, mas n?o aconselho isso – sorriu compreensivo. – Tirar uma vida para manter a sua só trará o medo e a dor do outro para você.
- Como você se alimenta aqui, neste mundo?
- Ah... Há algumas formas, vigilante. Olhe à sua volta. N?o parece, mas essa é uma terra dadivosa e amorosa. Sinta a energia do que está em volta, e ent?o reconhecerá o que pode te sustentar. Há árvores que d?o frutos e s?o ótimos para manter nossos corpos agora densos, há folhagens e raízes e, há a água, que é o elemento de maior energia por aqui. Se quiser também pode se alimentar do fogo e do ar. O fogo é bom, e o ar é um pouco mais lento para isso.
- O fogo parece ser interessante – cismou a vigilante. – é energia pura e...
- Sim, ele é um bom fornecedor de energia, mas é bom ter cuidado com ele. Ele n?o é o fogo etéreo com que se acostumou. Já vi alguns vigilantes serem consumidos por esse fogo, porque ele, aqui, é vivo.
- Como? Um ser do fogo? – maravilhou-se pela primeira vez.
- Sim... Salamandra é o seu nome. Alguns vigilantes se deram mal, quando n?o o respeitaram. Na verdade, vigilante, tudo aqui é vivo, como a água, com as ondinas; o ar com os silfos; o fogo com as salamandras, e a terra, com Gaia. Também n?o se esque?a dos entes da terra, como as pessoas, que cuidam dos animais e das plantas...
- é verdade isso? Você sabe, nas outras dimens?es e nos outros planetas isso também é verdade mas, pelo que você contou, aqui parece ter isso sido elevado em um grau bem maior.
- Num grau bem maior - suspirou. - Alguns anjos, quando criaram esse planeta, tiveram muito carinho e amor em sua constru??o.
- Conheceu algum deles?
Lázarus a observou, e notou um tom de deboche e descren?a.
- Alguns – disse com suavidade, um sorriso plantado no rosto, mostrando que suas inten??es n?o tinham poder sobre ele.
Ela o observou com desinteresse.
- Ah, que bom ent?o. Ao menos algum futuro. No entanto, como gostaria de ser uma AsaLonga e poder voltar - falou, o tom mais distante e pensativo. - Mas, s?o escolhas que fazemos, n?o s?o?
- Se você está aqui, vigilante, ent?o essa é a escolha que você fez. Aproveite! – falou se elevando lentamente. – Sabe, há uma outra forma de aumentar sua energia.
- é? Qual?
- Os drag?es, se você conseguir o respeito deles, o que n?o é muito fácil – revelou.
Com um giro se voltou e voou para longe.
A vigilante seguiu com os olhos seu caminho pelo ar, conferindo que estava indo na dire??o leste.
Ariel suspirou, pensando nas palavras do anjo: escolha que fizera. Será que fora realmente por sua escolha que estava ali, naquele planeta maldito? E, quanto aos drag?es, parecia uma coisa muito interessante, cismou. Talvez, se ele a levasse consigo para os reinos do leste, poderia ser uma boa forma de conseguir contatar os drag?es, e lhes ser útil de alguma forma.
Súbito, vindo de longe, da dire??o que o AsaLonga tomara, ouviu ruídos de batalha.
Tomada pela curiosidade se elevou e foi naquela dire??o.
O que viu a deixou maravilhada.
Ao longe para o leste viu uma grande cidade, que reconheceu pelas linhas majestosas e bem trabalhadas devia ser dos ellos. Estava perdida naquela vis?o quando foi tirada de sua concentra??o por sons de metais se batendo. E n?o eram metais quaisquer, reconheceu: eram metais dos anjos. Os sons vinham de algum lugar mais ao norte. Prestou um pouco mais de aten??o, imaginando que o AsaLonga devia ter dado de cara com uma tropa de dem?nios que zanzavam por aquela floresta.
Se adiantou um pouco mais naquela dire??o.
Quando lá chegou viu que o AsaLonga se batia contra vários dem?nios. Eram quatro deles, sendo que três se mostravam na forma de mantos e o último na forma humanoide, vermelho de capa marrom.
Absorta ficou olhando, estudando a forma como ele lutava. Ele parecia um dan?arino, girando e saltando com uma leveza mortal e de enorme eficiência, abrindo e fechando as asas em grande velocidade. Eles n?o teriam muita chance contra aquele anjo, ela conferiu.
A vis?o era t?o empolgante que se pegou com os músculos tensos, como estivesse participando da confus?o.
Ent?o, quase sem pensar volitou, surgindo ao lado de Lázarus, bloqueando a aproxima??o de um manta.
O manta guinchou de surpresa e ódio e a atingiu de lado, a vigilante escapando por pouco da garra que ele projetara. Como se tivesse sido empurrada girou duas vezes, ganhando impulso, enquanto sacava e avan?ava as duas espadas. No último giro atingiu o manta, que cortou por toda a largura, como se tivesse usado uma tesoura muito afiada.
O guincho foi terrível, fazendo o último dos atacantes se p?r em desabalada fuga.
- Eu sei, eu sei, estava tudo sob controle – falou séria guardando as espadas, sentindo o lugar que o dem?nio a atingira. Com um passe da m?o desfez o ferimento, sabendo que, mesmo assim, ainda iria doer por algumas horas.
Lázarus a observou com cuidado.
- Eu só ia dizer obrigado – sorriu se aproximando. – Meu nome é Lázarus...
- Deveria ser chamado de o roto – falou ela, observando os lados do lugar em que estavam, conferindo se havia ainda alguma amea?a. Relaxou ao confirmar que tudo estava bem.
- As mulheres s?o incríveis, n?o é mesmo? – sorriu Lázarus. – As aparências pouco importam, menina.
- Primeiro, n?o sou menina. Segundo, aparência importa sim. Suas roupas e armaduras est?o rasgadas e manchadas de sangue, o que é horrível. E o seu corpo está muito mal, Lázarus. Deveria se cuidar um pouco, pelo menos.
- Ora, estou bem assim – sorriu.
- Está certo. Como disse, s?o escolhas, n?o s?o? Agora, vendo você mais de perto, é sobre você que andam comentando por aí, n?o é mesmo?
- é mesmo? E, como sabe que sou eu?
- Ora, falam de um caído...
- AsaLonga – ele corrigiu.
- Que seja... Ouvi falarem de um AsaLonga de aspecto meio judiado. Só pode ser você – sorriu desafiadora.
- é, parece que é – ele sorriu por sua vez. – Quanto ao que dizem, se sou eu ou n?o depende muito do que est?o comentando por aí. O que seria? – perguntou examinando um grande rasgo na armadura, toda manchada de sangue. Com um passe p?s um remendo de metal brilhante ali, o que fez Ariel abanar a cabe?a desconsolada.
- De um anjo que fica no alto de uma montanha, sozinho, pensando com algumas flores que invoca...
- Ah, s?o flores-do-ar. Elas s?o bonitas, azuis... – explicou. – Me ajudam a pensar...
- Sei... Eu conhe?o essas florezinhas mudas – ela sorriu. - Os conselhos delas n?o s?o lá grande coisa...
- é porque elas s?o simplesinhas ainda, e muito tímidas. Mas s?o boas... – riu Lázarus.
- Acho que você está sem alguns dentes – ela falou, passando o dedo pela boca, dando ênfase à sua observa??o.
- Dentes? Ah, sim, dentes – sorriu ele sem gra?a, recompondo alguns deles, ao menos os da frente. – Melhorou? – perguntou, abrindo a boca.
- é, um pouquinho – confirmou ela após dar uma olhada rápida na boca dele.
- Quanto ao que fica nas montanhas, sou eu mesmo...
- O mesmo que matou mais de cem alde?es esses dias?
Lázarus ficou sério, os olhos postos na vigilante.
> E que trucidou três caídos n?o faz muito tempo?
- Como eu disse, vigilante, escolhas... – falou. – Obrigado pela sua ajuda. Quando precisar, sabe meu nome – falou abrindo as grandes asas e se elevando.
- Espero que saiba o que está fazendo, Lázarus. Enquanto for AsaLonga, pelo menos. Bem, n?o vai querer saber meu nome? – ela perguntou divertida.
- Quando quiser, se a gente se encontrar algum dia, você me diz – se despediu.
Com duas batidas rápidas das asas, em pouco tempo sumiu além do horizonte, tomando a dire??o do norte, possivelmente para seu destino inicial, antes de encontrar os dem?nios.
Ariel ficou em silêncio pensando sobre os drag?es.
Passados alguns segundos ouviu um som de trombeta bem longe, na cidade dos ellos, o que lhe disse que ele chegara ao destino.
Tentou voltar sua aten??o para o céu, mas percebeu que seu interesse já n?o estava mais lá.
Lázarus, antes que tocasse o pavimento de pedras no alto da Cidade Azul, diante da comitiva que o aguardava, balan?ou a cabe?a, tentando tirar as palavras da vigilante que ficavam ro?ando em sua mente. Mas, vira-e-mexe elas voltavam, se insinuando em cada batida das asas: “enquanto for AsaLonga”.